APRESENTAÇÃO
As palavras têm duas funções importantes em nossas vidas: a primeira é representar o mundo como o conhecemos, já pré-construído, o mundo que nos é dado; a segunda função é permitir a construção de um mundo novo, ainda não existente, que começa a
existir a partir da palavra. Usamos, portanto, a palavra não apenas para conhecer o mundo, mas também para construí-lo. Compreender o mundo que nos cerca tal como ele é na sua realidade é tão importante como criar um mundo possível, tal como ele deveria ser, de acordo com o nosso desejo. O domínio da palavra, em seu sentido amplo, é, assim, essencial, tanto para compreender como para construir.
Em seu sentido mais restrito, palavra é léxico; faz parte do sistema linguístico, combinando-se com outras palavras, formando frases e criando textos. É nesse sentido que vejo o estudo apresentado por Lucilene e Rosângela neste livro: foca a palavra como elemento de um conjunto maior, contrapondo-se a outros elementos da língua, situados na fonologia, na sintaxe ou em outros segmentos, que a contêm ou que podem estar nela contidos. Com a ênfase no léxico, e principalmente na língua escrita, cria-se a necessidade
da fronteira para separar um segmento do outro; o fluxo contínuo da língua oral, quando traduzido para a escrita, é segmentado por espaços, muitas vezes arbitrários e totalmente imprecisos na sua colocação. A criança, por exemplo, ao adquirir a língua escrita terá que aprender que “embaixo” é uma palavra, mas “em cima” são duas; como terá também que aprender que os segmentos “lavadora” e “máquina de lavar” remetem ao mesmo referente, claramente designado no mundo, embora sejam escritos com um número diferente de palavras. A segmentação da palavra em léxico problematiza, de modo muitas vezes inesperado, a relação entre a palavra e o mundo, que deixa de ser unívoca.
Uma consequência da ênfase no léxico, com a criação de fronteiras, é também a necessidade de se estabelecer uma política de boa vizinhança com os outros segmentos da língua; o que está do lado de cá da fronteira precisa manter um bom relacionamento com o que está do outro lado, para evitar o conflito. Uma palavra é reconhecida pela sua relação com as outras palavras e até pela ordem de colocação na frase: todos sabemos, por exemplo, que “um grande homem” é muito diferente de “um homem grande”; como também sabemos que a palavra “bico” tem significados diferentes em “A criança chupou o bico” e “O passarinho machucou o bico”. A construção do sentido, com ênfase no léxico, precisa levar em consideração não só a relação com o mundo, no eixo paradigmático (bico = chupeta), mas também a relação com os outros elementos do texto, no eixo sintagmático (bico-criança).
O processo de aquisição das palavras nos dois eixos, paradigmático e sintagmático, tem sido muito estudado no desenvolvimento da língua oral, feito espontaneamente pela criança.
O mérito deste livro é trazer esta investigação para o mundo da escrita, no qual o processo de aquisição não apenas se amplia com novas aquisições lexicais, mas também se torna mais apurado, refinando significados já existentes e acrescentando novas acepções. A constatação
de que a aquisição lexical na leitura é menos espontânea do que na oralidade e precisa ser induzida dá ao livro um mérito ainda maior, na medida em que mostra como esse processo de indução pode ser conduzido pelo professor na sala de aula.
Porto Alegre, julho de 2011.
Vilson J. Leffa